segunda-feira, 19 de novembro de 2018
«Eleitoralismo» e democracia sem povo
"Qualquer Orçamento do Estado pode, e deve, suscitar análises críticas, na generalidade e na especialidade, e o que agora foi apresentado para 2019 não é excepção. Mas a obsessão com a crítica de «eleitoralismo» que a direita política e ideológica demonstra é de outra natureza: está para lá da disputa estritamente democrática, e por isso merece reflexão. [...]
O que revela então esse rótulo de «eleitoralista» que é colado pela direita no debate orçamental? À primeira vista, parece acusar apenas os autores do documento, neste caso o partido no governo e os outros três partidos com quem este negociou a proposta apresentada. Nesta perspectiva, denuncia-se que eles não olhariam a meios para «satisfazer» – ou, noutra versão, «enganar» –, aqueles cujo voto pretendem angariar, a qualquer custo, no dia das eleições. [...]
A acusação de «eleitoralismo» [...] acaba por operar, junto dos eleitores a quem as políticas se destinam, uma naturalização do que são, no presente e no futuro, escolhas aceitáveis e escolhas inaceitáveis. Uma naturalização que é em si mesmo antidemocrática, pois insinua que o poder de definição do que é (ou não) aceitável reside fora da deliberação democrática. Na sua perspectiva, se uma maioria de pessoas estiver satisfeita ao ponto de dar o seu voto às forças políticas que considera responsáveis por essa satisfação, isso só significa que o povo está a ser enganado ou que ele quer o que não devia querer – o que não pode querer, seja isso a devolução de rendimentos ou mais emprego, e mesmo em contextos, como o português, em que os salários continuam a ser muito baixos, a precariedade gritante, etc.
Aqui chegados, o alvo da crítica de «eleitoralismo» somos nós. É o cidadão comum, que tem expectativas e que luta por uma vida melhor, e não apenas o governo ou as forças que o sustentam. Mil vezes repetida na comunicação social, a imputação de «eleitoralismo» serve o propósito de baixar expectativas, de as erradicar se possível e, se não for, de preparar o terreno para voltar a apregoar-se que vivemos acima das nossas possibilidades, que quisemos o que não tínhamos direito de querer, e que por isso seremos castigados com mais crises e mais políticas de austeridade. Quando se dá por isso, a austeridade torna-se permanente, torna-se um estado natural: umas vezes sofrida na pele, com cortes reais; outras na mente, com sonhos cortados pelo medo e pela culpa. Torna-se uma autocensura."
Sandra Monteiro
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