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quinta-feira, 18 de junho de 2015

Tu aí, Senhor-Mercadoria, REVOLTA-TE!


"Vivemos neste paradoxo. Quanto mais o neoliberalismo alarga a lógica do mercado às diversas áreas da organização social, mais constrói um mundo que tudo transforma em mercadorias. Transforma tudo… e todos. Incluindo os «todos» que mais teriam a ganhar, em ganhos de vida com bem-estar, vivendo numa sociedade de lógicas económicas plurais, em que o debate sobre as modalidades alternativas de organização social fosse encorajado.

Destruídos os vínculos sociais, a confiança de que os direitos e contratos serão respeitados, comprometida a convicção de que o poder político faz escolhas para defender a comunidade, como podem cidadãos reduzidos a mercadorias revoltar-se? Um dos caminhos passa por compreender o quanto o neoliberalismo é hábil e sistémico na construção do mercado e de mercadorias. Observando-o para o combater.

Projecto de vocação totalitária, o neoliberalismo evolui eliminando o espaço da divergência e reconfigurando os sectores ainda protegidos da lei da oferta e da procura, onde imperam lógicas de coesão social e territorial, de direitos (sociais, laborais, ambientais…), de trocas não-mercantis e não-monetárias. [...]

O que é difícil é encontrar um sector que tenha escapado à linguagem e às engenharias neoliberais. Com efeito, a lógica do mercado criou uma arquitectura de dimensão internacional (Organização Mundial do Comércio, União Europeia, Tratados de Comércio Livre, etc.) para se implantar, mas disseminou-se também nas mais ínfimas células do tecido social. A linguagem que passou a ser usada, como se nada fosse, foi traduzindo uma mudança de paradigma social, senão mesmo civilizacional. Enquanto as leis e os direitos laborais davam lugar ao «mercado de trabalho», as secções de pessoal eram substituídas por «departamentos de recursos humanos», os trabalhadores e os seus saberes por «capital humano», a informação e o conhecimento por «conteúdos» e «produtos».

[...]

Que esta narrativa surja com mais força quando a «economia de mercado» não funciona e o «mercado de trabalho» não emprega são meros detalhes. Desde que se consiga aproveitar a oportunidade da crise, claro, para baixar salários, pensões, prestações sociais e atacar o Estado social e os serviços públicos. Como se vê olhando para o núcleo das imposições que se mantém ao povo grego, com ou sem Troika – como acontecerá em Portugal –, o cerne do regime de acumulação (e de desapossamento) não está na ficção em tons cor-de-rosa que vai sendo servida; está na armadilha económica e financeira (dívida, imposições orçamentais) que torna dependente dos credores financeiros o poder político, seja qual for o programa com que os governos são eleitos. Os restantes dispositivos – podermos ser todos empreendedores, inovadores, vendáveis no mercado, e ainda assim vivermos condignamente como sociedade – existem para garantir a feliz aceitação dessa dependência, enquanto se sonha com uma modernidade bloqueada. Até que as mercadorias se revoltem."

Sandra Monteiro

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