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domingo, 13 de dezembro de 2015

O Estado somos nós


"[...] estamos perante uma absoluta prioridade: virar a página da austeridade. Isso significa recuperar investimento, devolver rendimentos às famílias, reverter negócios ruinosos, dignificar as relações de trabalho, capacitar os serviços públicos, investir no Estado social, concretizar políticas de protecção social. Virar a página da austeridade é um programa muito mais limitado e muito mais ambicioso do que possa parecer, o que significa que a extensão da sua concretização vai depender muito de como for entendido por quem o aplicar. O que, por sua vez, depende da mobilização que as forças políticas e sociais, da rua aos locais de debate e ao Parlamento, forem capazes de fazer nos próximos anos.

Porquê mais limitado? Porque parar com a austeridade, revertendo as políticas dos anos da Troika, é condição necessária mas não suficiente para avançarmos: apenas nos coloca no patamar anterior, certamente de menor sofrimento, desigualdade e injustiças, mas, por si só, incapaz de evitar o estado (e o Estado) a que chegámos. A trajectória de empobrecimento e desigualdade da sociedade portuguesa está em marcha há bem mais de uma década. Ela assenta na tal engenharia de reconfiguração dos Estados e das sociedades que tornou países como Portugal particularmente frágeis a choques assimétricos (externos e internos). Já existia quando o primeiro-ministro Cavaco Silva declarou que um curso superior ou os cuidados de saúde são investimentos de cada um em si próprio, devendo ser pagos por cada um. O resultado foi a elitização do ensino superior, a privação de cuidados de saúde (e a opção por serviços privados, propositadamente embaratecidos) ou a culpabilização dos pobres por flagelos como a obesidade, a diabetes ou o consumo excessivo de anti-depressivos. Porque não foi nada disto revertido?

[...]

Seja como for, a emergência é agora. E virar a página da austeridade, por tudo isto, é também um projecto ambicioso. O país está hoje mais endividado, com a dívida pública perto dos 130% do produto interno bruto (PIB) – um recorde absoluto. O défice pode não ficar abaixo dos 3% já este ano e as metas futuras continuam a ser altamente improváveis. O país está mais pobre, mais desigual (é já o mais desigual da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Económico, OCDE), mais desempregado e mais precário do que nunca, e o investimento caiu para valores de há trinta anos. A sangria dos contribuintes para salvar bancos ameaça estender-se a mais bancos privados. A austeridade não cumpriu nenhum dos objectivos com que enganou tantos cidadãos – mas cumpriu a sua agenda verdadeira. A União Europeia e os credores financeiros ainda não mostraram ao novo governo português – mas mostraram ao grego –, a margem de manobra que tencionam aceitar para a prossecução de políticas de esquerda, mesmo moderadas como estas são. Das suas respostas dependerá a ilegalização (ou não) das políticas da social-democracia no espaço da União e do euro.

Tudo isto vai estar em causa no período que agora se abre. A esperança no regresso de políticas alternativas à austeridade implica que tenhamos consciência de que a nossa sociedade tem estado a ser reconfigurada, a partir do Estado, de alto a baixo e que é necessário um movimento que imponha uma outra «reforma estrutural», desta vez de esquerda. Ela não poderá depender apenas de um governo que terá de gastar boa parte das suas energias num combate em instituições externas. O Estado somos nós? Então sejamos ramos em que floresçam cravos."

Sandra Monteiro

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