quinta-feira, 28 de abril de 2016
Revisionismo e Desmemória
"A história é um palco de combates entre a ciência, de um lado, e do outro o revisionismo e a desmemória, cujo objectivo é legitimar a implantação de um novo curso capitalista neoconservador e neoliberal.
Recuso que essa nova ordem conservadora e liberal, com formas brutais de acumulação de capital, se apresente como o fim da História, no sentido do fim dos processos históricos como processos de mudança. No mundo ocidental, a capacidade de resiliência cultural e memorial dos paradigmas emancipatórios não só sobrevive às rendições do centrismo e da social-democracia, como tende a renovar-se.
Na Revolução de 1974-75, a fundação constitucional da democracia assentou num consenso de condenação inequívoca do passado ditatorial. No entanto, há processos pelos quais, na actual sociedade portuguesa, se desenvolvem as tentativas de reinterpretação do passado recente.
A primeira é a desmemória criada pelos media, pela escola e as novas tecnologias, que geram um ambiente de presente contínuo, que significa uma forma de manipulação da memória pelo apagamento de acontecimentos, de processos históricos e de valores que transportem do passado um potencial subversor da nova ordem que se pretende estabelecer. Uma espécie de amoralismo paralisante que inculca a aceitação acrítica da lei do mais forte, da injustiça social, da destruição das forças produtivas.
O objectivo deste apagão selectivo da memória é impor, por exemplo, novas regras de trabalho como se tratasse de uma fatalidade. É mais fácil impor as 10 ou 12 horas de trabalho aos operários da indústria automóvel se se lhes apagar a memória dos rios de sangue que correram para que a classe operária europeia ou americana conquistassem a jornada de oito horas de trabalho.
O segundo processo desta revisão das representações do passado é a utilização da memória como farsa, como objecto de consumo, espectáculo lúdico, inocente e banalizador. São os seus veículos alguma literatura de cordel e até algum trash televisivo que tende a apresentar Salazar como um homem comum, ou mesmo como o vencedor do concurso Grandes Portugueses que a RTP organizou em 2006-07.
O revisionismo de registo historiográfico é o terceiro processo de tentativa de reinterpretação do passado recente, aquele que pretende refugiar-se no estatuto da escrita da história para poder ser evocada como argumento nos debates acerca do passado. Quando autores como Vasco Pulido Valente ou Rui Ramos, a propósito do centenário da I República (e bem antes) a caricaturam como um regime terrorista e caótico, num discurso primário decalcado da propaganda estadonovista, o que pretendem não é tanto tratar da I República, mas sim legitimar a ditadura militar e o salazarismo que lhe teriam sucedido como aurora redentora.
A ideia do revisionismo sobre o Estado Novo é reduzir o antigo regime à normalidade conservadora que o permite apresentar, na sua fase marcelista, como um processo de desenvolvimento de onde sairia uma qualquer espécie de transição pacífica para uma democracia musculada e de solução federativa para a guerra colonial. Um processo que foi interrompido pelo caos inopinado da revolução.
Na verdade, a revolução de 74-75 constitui a marca genética da democracia portuguesa, o principal factor que a viabiliza e define o seu perfil inicial. Cortar-lhe essa amarra é o propósito teórico essencial do revisionismo historiográfico, prenhe de evidentes efeitos de toda a ordem para os dias de hoje.
As tarefas da história e os usos da memória são indissociáveis do tipo de sociedade que queremos como presente e como futuro."
Fernando Rosas
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