«O debate sobre a sustentabilidade da segurança social tem sido dominado pelos argumentos demográficos que apontam para uma tese semi-catastrofista em que a evolução da pirâmide etária (com o aumento da população aposentada em relação aos trabalhadores no activo) comprometeria a sua sustentabilidade. Esta é uma explicação errónea. A chave da sustentabilidade da segurança social está na riqueza produzida e nas relações laborais e não no actual quadro demográfico, que aliás a ONU prevê que não se altere significativamente até 2060.
O aumento da esperança média de vida (EMV) não é uma tragédia, mas uma bonança civilizacional que exigiu uma evolução de milhares de anos. Por outro lado, a EMV é uma média – entre a de um operário manual e a de um gestor de topo pode haver uma diferença de 18 anos! Lembremos ainda que a EMV em Portugal é sensivelmente idêntica à dos países do Norte da Europa, mas a EMV com saúde é das mais baixas, 6 anos – contra os 15 da Dinamarca, por exemplo. Por fim, os cálculos actuais da EMV usam como pressuposto o nível de bem-estar actual, isto é o acesso à saúde e segurança social, habitações salubres, alimentação de qualidade, mobilidade. Se se cortar nestes sectores, a expectativa é que a EMV caia. Ou seja, cortar na segurança social pode significar de facto passarmos a viver menos.
A segurança social é sustentável, e superavitária, se se impedir a sua descapitalização por parte do Estado e se se garantirem relações laborais-padrão, protegidas.
A descapitalização da segurança social começou na segunda metade dos anos 80: a utilização do fundo da segurança social para gerir os programas assistencialistas decorrentes do desemprego (os “pais” a pagar o desemprego dos “filhos”); as pré-reformas, algumas aos 45 ou 50 anos, em que trabalhadores efectivos e com direitos (que contribuem) são substituídos por trabalhadores precários; as dívidas não cobradas (8 mil milhões de euros); a transferência dos fundos de pensões de CGD, PT, Marconi, ANA (valem hoje menos 1/3); a neblina opaca que encobre o valor real (não nominal) dos fundos de pensões da banca; os subsídios da segurança social a lay-offs (triplicaram nos últimos 5 anos); a Formação Profissional e Políticas Ativas de Emprego (1,4% do PIB), entre eles o programa Impulso Jovem, que permitem às empresas contratar trabalhadores a custo quase zero; e até um momento burlesco: a utilização do fundo da segurança social para «ajuda humanitária ao Kosovo».
Dedicámos a maioria dos nossos estudos às relações laborais porque cremos que é nelas que está a chave da sustentabilidade. Sendo verdade que o número de idosos e aposentados aumentou, não é menos verdade que o número de trabalhadores activos nunca foi tão grande como neste Portugal de início do século XXI (lembremos a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho). Temos hoje 5,4 milhões de activos e cerca de 2,5 milhões de pensionistas e reformados por velhice, ou seja o dobro dos activos para os pensionistas e reformados.
Para definir a sustentabilidade da segurança social interessa conhecer a produtividade destes trabalhadores. Ora a produtividade tem aumentado mais do que o suficiente para compensar qualquer perda no futuro previsível na população activa ou aumento proporcional da população de pensionistas (a produtividade por trabalhador em Portugal aumentou 5,37 vezes entre 1961 e 2011, isto é, 430% por trabalhador). Porém, metade da população activa está desempregada ou é precária (recebendo em média 37% menos, o que não lhe permite descontar para as pensões dignas do que já não estão a trabalhar).
Feitas as contas, há duas perguntas essenciais neste debate. A primeira é como ficará o sistema de segurança social depois dos anunciados 200 mil despedimentos na função pública? A segunda, claro, já todos nos colocámos: uma sociedade civilizada é sustentável sem segurança social?»
Raquel Varela, historiadora, coordenadora de A Segurança Social é Sustentável. Trabalho, Estado e Segurança Social em Portugal (Bertrand, 2013).
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