""O projecto liberal traz sempre a liberdade na ponta da língua, mas a sociedade que pretende criar, que está a criar, visa substituir as comunidades por sociedades de seres atomizados, entregues à sua sorte (ou à lotaria da classe em que nasceram).
Que liberdades podem ser proporcionadas, para já não dizer garantidas, por um projecto de sociedade que se organiza para empobrecer, esfomear, desempregar, precarizar, desocupar e expulsar a maior parte dos cidadãos de um país? Em rigor, o texto constitucional que fosse redigido pelo projecto liberal hoje, se fosse honesto, teria de assumir que entende as liberdades, não como laços que libertam, mas como um deslaçamento destinado a aprisionar a maioria… e a «libertar» alguns privilegiados.
Para ser conforme com a prática liberal, um tal texto teria de consagrar a liberdade de acumulação dos rendimentos para o capital e a liberdade de circulação de pessoas, mas só aquelas cuja pobreza não «incomoda». Garantiria a liberdade de circulação de mercadorias, produzidas pela mão-de-obra mais explorada, e a liberdade de criação de uma massa de trabalhadores desempregados e precarizados, para assegurar essa mesma exploração. Consolidaria a liberdade dos Estados de quebrar todos os contratos com os cidadãos, para o que é muito útil a instauração de um «estado de necessidade». Cuidaria, em contrapartida, da liberdade de honrar os contratos com os poderosos, a começar pelos credores financeiros e pelos detentores de propriedade privada – mesmo quando numa imensidão de casas desocupadas podiam habitar cidadãos que vivem nas ruas; mesmo quando as florestas e os campos são entregues ao fogo e ao abandono, em vez de serem fruídas e cultivados; mesmo quando a investigação de contas em offshores e paraísos fiscais podia canalizar para o orçamento público e para a economia verbas que agora só engrossam a riqueza, a fraude e a especulação."
Sandra Monteiro
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